domingo, 6 de janeiro de 2013

PATAA'MAIMU - VOZES DA NATUREZA

Ricardo Papillon Dantas



PATAA'MAIMU - VOZES DA  NATUREZA

Capítulo III

Não foi muito difícil para a comitiva indígena localizar os guerreiros karaiwas. A poucos quilômetros podia-se ouvir o ronco dos motores a diesel de tratores e caminhões que trabalham na obra da estrada. Pajé Panaman alertou que daquele ponto em diante o cuidado deveria ser redobrado. Andavam de forma compassada e em muito silêncio. Yuri esticou lentamente uma flecha no arco, mas foi advertido pelo feiticeiro a relaxar a arma. Taijí segurava firmemente a zarabatana. O acolhido encabeçava a coluna, por prudência, caso um karaiwa surgisse repentinamente, poderia se comunicar imediatamente e anunciar as intenções pacíficas.
Quanto mais se aproximavam, mais intenso ficava o barulho dos motores. Era possível distinguir vozes de pessoas gritando em meio ao estrondo das máquinas. Arumã, que vinha logo atrás do acolhido, assobiou em sinal de vestígios evidentes de pessoas nas proximidades. Pajé Panaman há tempos pressentira os dois guerreiros karaiwas em cima de uma árvore uns cinqüenta metros a frente deles. Obviamente que sabiam da movimentação da coluna. O feiticeiro ordenou que todos agissem normalmente, como se não soubessem que os karaiwas espreitavam os passos da comitiva. A cerca de dez metros da árvore, um dos soldados gritou:
− Quem vem lá?! – com o grito do soldado ,o acolhido parou sem movimentos bruscos, gesto que foi imitado por todos.
− Somos da Aldeia Warara’pai! – respondeu  – Estamos de passagem.
− É proibido andar nessa área – advertiu o militar.
− Mas essa área faz parte de nossa reserva. Temos o direito de andarmos nela quando quisermos.
− Sua reserva?! Você nem índio é! Dá pra ver pela sua cara! Os outros seis que estão com você são índios, mas você?! – o soldado zombava.
− Vai ver ele é escravo dos índios! Mas quem diria, um homem civilizado sendo escravo de um povo primitivo como esse! – completou o segundo soldado. Os dois militares gargalharam e começaram a descer da árvore – Ei escravo, avise seus donos para ficarem quietinhos. Qualquer movimento mandaremos bala! Até mesmo em você, já que é escravo e não presta pra nada!
Os soldados cercaram a comitiva, com os fuzis apontados de forma ameaçadora.  Enquanto os indígenas ficavam imóveis, os militares andavam em volta deles, observando com atenção tudo o que carregavam.
− Para onde vocês estão indo escravo?! – um dos soldados cutucou o acolhido com a arma – Ei Lisboa! Fica de olho nesses índios enquanto interrogo o escravo aqui!
− Meu nome é José, – o cearense afastou a ponta do fuzil de seu peito – e estamos indo pescar no rio Parimé.
− Está proibido pescar no rio! Estamos em obra! Melhor voltarem para a toca de vocês! – o soldado falou em tom ameaçador tornando a apontar o fuzil em direção ao peito de José.
− Por favor, respeite-me! – novamente afastou o fuzil de seu peito – Sou cidadão brasileiro e mereço ser tratado com respeito!
− Cale-se! – o soldado deu um golpe no estômago de José com o punho do fuzil. O ato fez com que rapidamente Yuri e Moyai esticassem seus arcos em direção de cada soldado, de forma tão ameaçadora que não poderiam escapar de serem mortalmente atingidos.
− Não se movam! – gritou José ainda no chão – A qualquer movimento eles irão soltar as flechas e vocês já eram! – as palavras eram proferidas com gravidade.
− Faça com que eles recuem! – os soldados agora estavam em desespero. O movimento dos guerreiros fora tão rápido que não tiveram nem tempo de erguerem seus fuzis para uma tentativa de defesa – Se algo acontecer a nós, toda a tribo de vocês será massacrada!
− Não deveriam colocar pessoas tão ignorantes para patrulhar desse jeito. – José se levantava lentamente – Mas pensando bem, por justamente vocês dois serem tão ignorantes, são descartáveis… O Exército com certeza não irá se importar em perder dois paspalhos como vocês! Não passam de ignorantes fardados e armados, nada mais que isto! Esses dois guerreiros que estão agora os subjugando mortalmente são verdadeiros guerreiros. Mas vocês subestimam tanto quanto são ignorantes… Como conseguem dominar o mundo… Como?!
− Mantenha a calma Warayo’ Karaiwa. – Panaman interveio na língua makuxi­ – Não deveríamos ter chegado a esse ponto! Sua impaciência, típica do povo civilizado, nos colocou nessa situação. Mas presumo que não teríamos outra opção. Eles não deixariam que nós avançássemos de forma pacífica. O que nos resta agora é desarmá-los e seguirmos nosso caminho.
José deu ordem para eles largarem as armas. Ao hesitarem, os guerreiros esticaram ainda mais os arcos. Prontamente jogaram os fuzis no chão. Taijí e Sipaare recolheram as armas enquanto Arumã retirava facas e pistolas em posse dos soldados. Yuri e Moyai continuavam com os arcos estivados.
− O que faremos agora Pajé?! – preocupava-se José – Se chegarmos lá com estes soldados como reféns, poderemos ser tratados como criminosos. Se deixarmos eles aqui amarrados, logo irão enviar alguém para inspecioná-los, e assim descobririam tudo com nós ainda lá. Seria uma tragédia. – José colocava as mãos na cabeça – Malditos! Por que simplesmente não deixaram a gente seguir nosso caminho?! – gritava em makuxi na cara dos soldados, que aterrorizados choravam.
− Calma! Calma! – o feiticeiro buscava tranqüilizar José – Sei de tudo isto que me disse e muito mais. Nossa situação é crítica sim! Porém temos um trunfo. – Pajé Panaman examinava de perto os soldados enquanto falava – Você mesmo disse que os soldados eram ignorantes! Eram descartáveis! Já sabia disso. Os karaiwas costumam agir dessa forma com seu próprio povo. Não possuem compaixão. Esses homens não possuem valor algum para seus superiores. Você pergunta como eles conseguem dominar o mundo… A resposta é simples meu caro Warayo’ Karaiwa, ao contrário de nós, eles não conhecem os sentimentos daqueles que estão a sua volta. Para eles é fácil travar uma batalha. Diferente dos povos indígenas que no passado lutávamos lado a lado com nossos primos, irmãos, tios, sobrinhos, e muitas vezes, pais e filhos… Uma batalha para nós era algo que ia além de impor poder e soberania. Na verdade, evitávamos as batalhas. Pois sabíamos que no outro lado pais e filhos também lutavam juntos, e que famílias sofreriam unidas a dor de qualquer guerreiro que caísse durante o embate! Mas para os karaiwas, a realidade é muito diferente! Seu exército é formado por anônimos! O que torna a batalha irrelevante, e a perda de seus semelhantes suportável…
− Entendo seu ponto de vista Pajé… Mas em que tudo isto se torna um trunfo?!
− Os soldados irão conosco até o acampamento dos guerreiros karaiwas. Eles não terão escolha. Terão que vir conosco, caso contrário serão punidos severamente pelos seus superiores. – o pajé examinava os homens, o que os aterrorizava – Através do medo dominaremos a mente deles.

(Ricardo Papillon Dantas, romance ainda em processo de construção. A história se passa na década de 50, no estado de Roraima, período de construção da BR 174, que corta a Reserva Indígena São Marcos ao meio.)

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